“Polícia acusa dois por ‘associação criminosa’ em SP
Em decisão mais dura contra suspeitos de atos violentos, a polícia de São Paulo acusou dois manifestantes detidos na segunda (23) de associação criminosa”.
Ao contrário do que foi noticiado na reportagem acima, os manifestantes não foram acusados pela polícia de São Paulo. Muito menos ela decidiu que era associação criminosa.
Para entender os dois erros, precisamos, primeiro, entender um dos fundamentos de qualquer democracia: a separação de funções.
Estamos acostumados a ouvir falar da separação dos poderes. Mas igualmente importante é a separação entre as funções dentro de um mesmo poder.
Imagine a democracia como a união de três casas. Cada casa cuida de si mesma mas fica atenta para o que os vizinhos de cada casa ao lado está fazendo para que eles não extrapolem seus direitos ou deixem de cumprir suas obrigações.
Mas se dentro de uma mesma casa um indivíduo faz tudo, ele assume um controle dentro daquela casa que é não só ineficiente, mas também perigoso para a democracia, pois dá a ele maiores possibilidades de camuflar seus abusos e falhas.
O mesmo acontece em uma democracia. Tanto a polícia quanto o Ministério Público são partes do poder Executivo (ainda que alguns membros do MP às vezes aleguem que são um quarto poder, independente). E essas duas instituição têm funções independentes. Cabe à polícia investigar. Cabe ao Ministério Público, baseado na investigação, decidir se acusará o suspeito ou não.
Se a polícia prende, investiga e decide se acusa, ela passa a ter um perigoso conflito de interesses que põe em risco a estrutura democrática. Afinal, é muito mais difícil para um delegado reconhecer que sua investigação é falha do que uma outra instituição – como o Ministério Público – dizer ‘delegado, a apuração em seu inquérito não me dá elementos suficientes para iniciar uma acusação contra quem você diz que é suspeito’. Por ser responsável pela acusação do suspeito, o Ministério Público exerce um controle indireto sobre a qualidade das atividades e investigações policiais, fortalecendo, assim, a democracia.
E também não cabe à polícia – ou ao Ministério Público – decidir se alguém cometeu um determinado crime. Isso cabe exclusivamente à Justiça.
Se a polícia investiga, acusa e decide, o risco para a democracia é ainda maior. É o que acontecia, por exemplo, na inquisição feita pela igreja católica na idade média. A consequência dessa falta de separação de funções é inevitável: o suspeito não é julgado com imparcialidade.
Em Estados democráticos, quem investiga (polícia) não é quem acusa (Ministério Público). E quem acusa não é quem decide (Judiciário). Aliás, em todas as democracias há estruturas que separam até mesmo a funções de prender e investigar. No caso do Brasil, isso é feito (ao menos em teoria) através da separação da PM (que é quem deveria efetuar o policiamente ostensivo) da polícia civil (que é quem deveria ser responsável pela investigação).
No caso da reportagem acima, o correto seria ‘Polícia indicia dois por associação criminosa’. Indiciar significa que a pessoa está sendo formalmente investigada pela suspeita de ter cometido um crime. Mas é apenas isso. Não significa que os suspeitos serão acusados de tal crime e muito menos que de fato cometeram tal crime. Isso quem decidirá será o Ministério Público e o Judiciário, respectivamente.